Trecho do livro Mulheres em Pedaços, de Umbelina Lopes
(Editora Armazém de Idéias; 120 páginas)
RASTEIRA
Dona Eugênia tinha uma cautela especial ao andar pela casa. Olhava para os lados, para o chão, desconfiada, esgueirando-se feito um gato. Quase sempre se desviava ao passar perto da poltrona em que o marido se sentava para assistir o futebol. Não era para menos. Todos os dias, durante os sete anos em que estiveram casados, o marido, ao vê-la passar afoita de lá para cá em seus afazeres domésticos, esticava preguiçoso a perna e lhe passava uma rasteira, rolando de rir todas as vezes que dona Eugênia se esborrachava no chão.
E isso não aconteceu apenas em casa. O marido passava os dias jogando e bebendo com amigos em um boteco da vizinhança e, por duas vezes, quando dona Eugênia precisou ir a uma mercearia ao lado do boteco, deu-lhe a rasteira no meio da rua, derrubando-a com as compras.
O jogo, aliás, estava sempre em primeiro lugar. Ele vivia dizendo que não trocava o jogo pela família. Quando dona Eugênia chegou do hospital após o parto do segundo filho, o marido, que nem sabia direito do ocorrido, olhou para a mulher e para a criança como se nada tivesse acontecido. Nem quis saber se era menino ou menina. Apenas virou-se para dona Eugênia e disse: "Já pariu?". E saiu para jogar.
Nas poucas vezes em que ela saía para festas ou para visitar algum parente, o marido a buscava pelos cabelos, dando-lhe chutes e pontapés, se chegasse da rua antes dela. Quando os parentes e amigos iam visitá-la, expulsava-os da casa, dizendo que "não ia com a cara deles". Um dia, chegou a colocar todos para fora, inclusive dona Eugênia e as crianças, que só conseguiu entrar de volta com o auxílio da Polícia Militar.
Ele já havia sumido de casa por várias vezes, ficando dias fora, deixando a mulher e os meninos vivendo de favores de vizinhos.
Um dia, quando amamentava o bebê, dona Eugênia abaixou-se para pegar uma fralda que havia deixado cair. Não tomou nenhuma cautela dessa vez, pois imaginou que, com a criança no colo, o marido não agiria como de costume. Enganou-se. Passou-lhe uma rasteira e, por pouco, a criança não morreu. Dona Eugênia caiu de mau jeito sobre o lado esquerdo, agindo rapidamente para proteger o menino. Fraturou o braço, mas não registrou queixa.
Dona Eugênia só procurou a Defensoria algum tempo depois desse episódio. Dias antes de prestar a queixa, estavam no meio de uma discussão quando ela lhe virou as costas. O marido começou a espancá-la. Deu-lhe tantos socos e tantos chutes que ela pensou que fosse morrer. Conseguiu livrar-se dele, apanhou o bebê no berço, pegou o outro filho, que chorava compulsivamente, e fugiu pela janela. Escondeu-se por toda a noite num lote vago, esperando o dia clarear.
Naquela noite, ali, ao relento, ela pensou: "O que pode ser pior que esta vida? Eu agüento?". E relembrou todos os maus-tratos, inclusive o do resguardo, quando ele a violentara sexualmente. Decidiu dar um basta. Não iria sofrer mais do que já havia sofrido na companhia dele. Se viesse algum outro contratempo, ela, que já passara por situações tão difíceis, saberia sair dele. Já estivera no inferno.
E, assim, nos procurou. Foi até o fim do casamento, prosseguindo com a separação que teve a ajuda e o amparo da Defensoria Pública.