Matérias da Folha de SP (06/11/06)
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Raras, ações por aborto só atingem pobres
Mulheres chegaram a ser algemadas aos leitos no hospital e presas por
causa de denúncias feitas por médicos ou parentes
Levantamento feito por ONG no Poder Judiciário fluminense mostra que perfil das
acusadas é de baixa renda e escolaridade
acusadas é de baixa renda e escolaridade
Ricardo Moraes/Folha Imagem
Aline (nome fictício), que passou uma semana algemada na cama do
hospital depois de um aborto e em seguida foi levada a uma delegacia
ANTÔNIO GOIS DA SUCURSAL DO RIO No dia 27 de novembro de 2002, Regina
(nome fictício), deixou seu bebê de 10 meses com uma amiga e deu
entrada no hospital Albert Schweitzer, na zona oeste do Rio, sentindo
fortes dores. Sem condições financeiras de procurar uma clínica
clandestina de aborto, ela tomou Cytotec, abortivo vendido ilegalmente.
Seria apenas mais um de tantos casos como esse que já passaram pelo
hospital, mas naquele dia começava um pesadelo. Inconformada, a
médica que a atendeu resolveu denunciá-la à polícia por
homicídio. Enquanto se recuperava, ficou algemada no leito do
hospital. Ao receber alta, foi direto para o
presídio Bangu 6, onde ficou presa por dois meses. Casos como o de
Regina são raríssimos. Um levantamento feito pela organização
não-governamental Advocaci com base em processos pelo crime de aborto
em quase todas as comarcas do Estado do Rio mostra que pouquíssimas
mulheres foram processadas por aborto. De 1998 a 2004 foram apenas 11
casos. Quando isso acontece, no entanto, o perfil das acusadas é
quase sempre o mesmo: são pobres, com baixa escolaridade, negras e
solteiras. Exatamente como Regina. Ela conta que, quando decidiu tomar
Cytotec, estava desempregada e cuidando de um filho de 10 meses. "Não
tinha condições de cuidar de outro. Por isso resolvi comprar esse
remédio na farmácia. De manhã, comecei a passar mal. Quando a
médica viu que eu tinha tomado Cytotec, chamou um policial." Ela
conta que recebeu ordens para não levantar da cama porque poderia
entrar em trabalho de
parto. No entanto, sentiu dores e foi ao banheiro. Lá, acabou
expelindo o feto. Bangu 6 "Quando ela chegou, veio me chamando de
assassina, dizendo que eu tinha afogado o bebê no vaso sanitário.
Mais tarde, voltou ao quarto acompanhada de um delegado e dois
policiais. Eles falaram que eu estava presa." Por causa do recesso de
fim de ano do Judiciário, Regina acabaria passando dois meses em
Bangu 6. Ao saber do caso, a Advocaci conseguiu que um escritório de
advocacia a representasse no processo. A acusação inicial era de
homicídio qualificado. Passou para infanticídio e, finalmente,
para aborto. Por fim, o juiz aceitou a suspensão do processo. "Me
explicaram que vou ser considerada ré primária novamente, mas, em
muitas firmas em que procurei emprego, vai sempre constar que eu tenho
antecedentes criminais." História muito parecida é a de Aline
(nome igualmente
fictício), que também recebeu apoio da Advocaci em seu processo.
Mãe de seis filhos, ela conta que se desesperou ao saber que esperava
o sétimo. Ela foi aconselhada por uma conhecida a tomar Cytotec.
Tomou a dosagem errada e acabou no hospital. No seu caso, Aline
desconfia que quem a denunciou foi uma tia. Após ter abortado, foi
também procurada por policiais que disseram que seria presa. "Eles me
algemaram na cama e fiquei uma semana presa no hospital. Fiquei mais uma
semana presa na delegacia, mas depois fui solta." Aline também teve
seu processo suspenso. Como Regina, ela também reclama da dificuldade
que teve para achar emprego por causa do processo. O advogado Rulian
Emmerick, autor da pesquisa com Gleyde Selma da Hora, conta que o
levantamento será ampliado para Pernambuco e Rio Grande do Sul. Para
ele, isso mostra que é necessário debater a legalização do
aborto. "Ninguém
aborta porque quer", afirma.
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Para governo federal, tema é caso de saúde
DA SUCURSAL DO RIO Já há algum tempo, o governo federal tenta
tratar o tema aborto como caso de saúde, e não de polícia. Um
projeto de lei que prevê a descriminação da prática até a
12ª semana de gestação, por exemplo, está em discussão no
Congresso Nacional. Ainda em 2004, o Ministério da Saúde divulgou
uma norma determinando que fosse dispensado tratamento digno às
mulheres que procuram a rede hospitalar após o aborto. O assunto, no
entanto, é polêmico. No mesmo ano da medida, o governo colocou o
tema em pauta ao sugerir, no Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres, uma revisão da lei do aborto. A iniciativa partiu da
ministra Nilcéa Freire, da Secretaria de Políticas para Mulheres.
Em reação, o então procurador-geral da República, Claudio
Fonteles, afirmou ser contrário ao aborto até em casos de estupro,
exceção prevista no Código Penal
brasileiro. Na campanha eleitoral, o presidente Lula foi cauteloso: seu
programa de governo para as mulheres evita usar o termo, mas diz que "o
Estado e a legislação brasileira devem garantir o direito de
decisão das mulheres sobre suas vidas e seus corpos".
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Médicos e bispo criticam denúncia de pacientes que interromperam
gravidez
Médicos e bispo criticam denúncia de pacientes que interromperam
gravidez
DA SUCURSAL DO RIO Mesmo que seja contra o aborto, o médico de uma
paciente que chega ao hospital com complicações por causa da
prática malfeita não deve denunciá-la à polícia. Essa
é a opinião de dois médicos e um bispo católico ouvidos pela
Folha . Na opinião de Jorge Andalaft Neto, presidente da comissão
nacional especializada em Violência Sexual e Interrupção da
Gestação da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia), não é função do médico
denunciar um paciente à polícia. "Ele pode anotar as
informações que recebeu no prontuário médico e, se for o caso,
avisar a direção do hospital. Não cabe a ele chamar a polícia.
Criminalizar a mulher não vai resolver a vida dela. Ela já está
passando por uma situação terrível", diz Neto. Ele explica que o
caso de um crime de aborto é diferente do de um bandido que
chega baleado ao hospital, por exemplo. "Todo ferimento, seja ele a
bala, a faca ou por agressão, tem de ser investigado. Para isso
existem policiais e até investigadores de plantão em alguns
hospitais. Mas uma mulher que chega com hemorragia pode estar até
mesmo com um aborto espontâneo." O ginecologista Luis Fernando
Moraes, diretor do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, diz
que nunca denunciaria uma paciente à polícia pelo crime de aborto:
"Sou cristão, católico, mas, como médico, entendo que é
preciso perceber as distorções da sociedade. Isso só acontece com
mulheres muito pobres. Elas já são punidas por não terem acesso
a métodos anticoncepcionais," diz. Moraes afirma, no entanto, que o
médico que denuncia uma mulher por aborto não fere a ética
médica. O presidente da Comissão para a Vida e Família da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dom Rafael
Cifuentes, diz que, do ponto de vista religioso, não vê motivos
para um médico chamar a polícia em caso de aborto. "A igreja
defende que a mulher seja tratada com todo carinho e compreensão, mas
isso não quer dizer que aceitamos descriminar o aborto. O caráter
da lei deve ser preventivo, para que as pessoas saibam que é crime e
reflitam antes de tomar essa atitude", diz. Cifuentes defende a
posição da igreja contrária ao aborto. "Adotamos o princípio
científico de que o feto é um ser humano. A fecundação é um
marco do início da vida. Daí para a frente, qualquer método
para destruí-la é assassinato", diz.
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on terça-feira, novembro 07, 2006
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