O Poder Judiciário deve reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo?  

Postado por Felipe Bruno Martins Fernandes

*FOLHA DE SÃO PAULO*
*TENDÊNCIAS/DEBATES
*São Paulo, sábado, 04 de novembro de 2006
*
O Poder Judiciário deve reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo
sexo?*

*SIM*

*Em nome da dignidade humana*

*KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE*

O PAPEL do magistrado em relação ao tema da união heterossexual, assim como
em todos os demais, é o de ser o garantidor dos direitos humanos.

Constatamos que a legislação infraconstitucional e, principalmente, o
pensamento transmitido nas universidades têm como ponto irradiador a
propriedade, o que deu vazão para que o reconhecimento das relações pessoais
ocorra nos estritos termos de uma sociedade de fato, na qual o sentido é
exclusivamente a divisão do patrimônio. Sob este ângulo, são inexistentes
para aqueles que não têm bens. Há um mundo de excluídos entre os excluídos
homossexuais.

Contudo, os povos deram primazia, por tratados internacionais, ratificados
pelo Brasil, ao valor da dignidade humana, acolhido como paradigma e
referencial ético. É nesse nível que a relação homoafetiva deve ser
analisada, para qualquer efeito e finalidade.

Importante registrar que direitos humanos "não nascem todos de uma só vez e
nem todos de uma vez por todas". É um processo em construção, no qual o
Judiciário tem papel fundamental, que realiza pelas decisões de primeira
instância, construindo a jurisprudência e dando vida ao direito em seu
processo de transformação, acompanhando o giro do mundo.

Antes falávamos de heterossexuais; agora, de relações homoafetivas. O núcleo
da relação e da vida é outro, e essa compreensão os operadores do direito
precisam alcançar.

O Judiciário engatinha, mas há passos significativos. O STJ, em ementa que
teve como relator o ministro Quaglia Barbosa, que tratava de direito
previdenciário, fez constar: "Não houve, pois, de parte do constituinte,
exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos
no campo previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deve ser
preenchida a partir de outras fontes do direito".

Outra ementa, que teve como relator o ministro Humberto G. de Barros,
indicou que "a relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união
estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de
assistência médica".

O TSE, recentemente, considerou que o relacionamento homossexual estável
gera a inelegibilidade prevista no artigo 14, parágrafo 7º, da CF.

Temos inúmeras decisões relativas à guarda de filho e herança decorrente de
relações homoafetivas.

Em legislações estrangeiras, há previsão expressa de matrimônio entre
pessoas do mesmo sexo, como na Dinamarca, França, Portugal, Suécia e
Alemanha, entre outros. Em alguns países, há autorização de registro de
casais de um mesmo sexo e contratos especiais, como na Colômbia e Espanha e
em algumas Províncias da Argentina e do Canadá.

No Brasil, temos proposições legislativas de caráter restrito que não
chegaram a termo e estão nos meandros do Congresso. Entretanto, obrigatório
ressaltar recente norma brasileira, a Lei Maria da Penha, que trata da
violência doméstica e introduz novo parâmetro de aplicação do direito na
matéria, ao estabelecer no artigo 5º que as relações pessoais "independem de
orientação sexual".

A relação homoafetiva é um fato; hipocrisia fechar os olhos para sua
existência e cruel não garantir dignidade para essas pessoas. Ainda que o
nosso ordenamento jurídico infraconstitucional não discipline os direitos
advindos das relações homoafetivas, a dignidade da pessoa humana é
fundamento da República, que acolheu os princípios da igualdade e da
liberdade. Assim, cristalino que a união estável não pode ser entendida como
exclusivamente heterossexual.

Cabe ao magistrado atuar no vácuo normativo. Fábio Konder Comparato lembra
que "a finalidade última do ato de julgar consiste em fazer justiça, não em
aplicar cegamente as normas do direito positivo. Ora, a justiça, como
advertiu a sabedoria clássica, consiste em dar a cada um o que é seu. O que
pertence essencialmente a cada indivíduo, pela sua própria natureza, é a
dignidade de pessoa humana, supremo valor ético. Uma decisão judicial que
negue, no caso concreto, a dignidade humana é imoral e, portanto,
juridicamente insustentável".

Os magistrados têm a obrigação de dar eficácia à idéia de que os seres
humanos devem ter uma vida digna como atributo indissociável de suas
existências, e só atingiremos essa meta se, na lacuna legislativa, deixarmos
de tratar as pessoas envolvidas em relações homoafetivas como sujeitos de
segunda classe ou não sujeitos.
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*KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE*, 47, juíza de direito em São Paulo, é
presidente da Federação de Associações de Juízes para a Democracia da
América Latina e Caribe e secretária do Conselho Executivo da Associação
Juízes para a Democracia.


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*O Poder Judiciário deve reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo
sexo?*

*NÃO*

*Realidades diversas, tratamentos distintos*

*PAULO SILVEIRA MARTINS LEÃO JUNIOR*

A CONSTITUIÇÃO de 1988 consagra em seu art. 226 uma máxima de pensadores
ilustres das mais variadas épocas e tendências ideológicas: a família é a
"base da sociedade". Razão pela qual, conforme tradição de nossas
Constituições, tem "especial proteção do Estado". Essa proteção se dá
mediante o instituto do casamento (entre homem e mulher, conforme parágrafo
5º do art. 226), previsto na Lei Maior e detalhado na legislação cível.

A Constituição, ademais, reconheceu, para efeito de proteção do Estado, "a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento" (art. 226, parágrafo 3º). A lei nº
9.278/1996, que a regulamentou, dispõe em seu art. 1º: "É reconhecida como
entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e
uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família". O Código
Civil de 2002, no art. 1.723, adota o mesmo conceito.

Um dos maiores jusfilósofos da atualidade, Karl Larenz, em seu clássico
"Metodologia da Ciência do Direito", leciona que o direito "desenvolve por
si métodos de um pensamento "orientado a valores'".
Apesar dos não poucos percalços, prossegue a família sendo efetivamente a
célula básica da sociedade, em que cada novo ser humano é gerado da união
entre um homem e uma mulher, que lhe transmitem não só o patrimônio genético
como também o psicológico, espiritual, cultural e de valores, constituindo,
ademais, a ambiência fundamental para o seu desenvolvimento. É o elo
imprescindível entre as diversas gerações que constituem uma nação -e, em
amplitude, a humanidade.

A união entre pessoas do mesmo sexo é realidade diversa, tanto com relação a
aspectos naturais e humanos como com relação a suas conseqüências -o que
importa em tratamento diferenciado.
Não tem fundamento, pois, a meu ver, a pretensão de aplicação, a essa união,
de regras do casamento ou da união estável entre homem e mulher.

E não altera tal situação a invocação a princípios gerais relativos à
dignidade humana, à igualdade perante a lei ou à vedação de discriminação,
que supõem, quando não exigem, tratamento distinto para situações distintas.


É esse o caso, aliás, dos impedimentos para o matrimônio (vide art. 1.521 do
Código Civil de 2002), em razão dos quais alguns homens e mulheres são
impedidos de casar.

Entendo, portanto, adequado o posicionamento da mais conceituada doutrina e
da jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e de outros
tribunais brasileiros que, a exemplo do legislador constitucional e cível,
não admitem a "união estável entre pessoas do mesmo sexo". Nesse sentido, a
douta jurista Maria Helena Diniz, que ressalta como primeiro dos "elementos
essenciais" à configuração da união estável a "diversidade de sexo" ("Código
Civil Anotado").

As várias questões decorrentes da união de pessoas do mesmo sexo, que
constituiria uma sociedade de fato com características especiais, devem ser
resolvidas, no meu entendimento, caso a caso, pelos tribunais, mediante
aplicação de princípios gerais de direito, não admitindo, entretanto, a
transposição pura e simples de regras da união estável entre homem e mulher,
como bem decidido recentemente, de forma unânime, pela Terceira Turma do
STJ.

Corroborando tal posicionamento, cabe lembrar a lição de um dos mais
insignes juristas brasileiros, Caio Mario da Silva Pereira, a propósito de
novos conceitos jurídicos, que me parece aplicável à questão: "É preferível
que a elaboração pretoriana vá promovendo sua construção dentro da variedade
dos casos da espécie, e destarte permitindo à doutrina uma flexibilidade
conceitual mais proveitosa". ("Instituições de Direito Civil", vol. 5).
Ademais, tratando-se de fenômeno social relativamente recente, ao menos em
suas atuais dimensões, conviria observar sua evolução e conseqüências, tanto
em nível individual como social.
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*PAULO SILVEIRA MARTINS LEÃO JUNIOR*, 51, advogado, é presidente da União
dos Juristas Católicos do RJ.

This entry was posted on sexta-feira, novembro 10, 2006 .