Matéria sobre as obras exibidas nas mostras audivisual e fotográfica do 8º Seminário Fazendo Gênero  

Postado por Felipe Bruno Martins Fernandes


06 de setembro de 2008 | N° 8185
Alerta

Cinema

O fígado de Prometeu

As obras exibidas nas mostras do 8º Seminário Fazendo Gênero nos convidam a olhar velhos mitos e imagens do corpo nosso de cada dia


A cena inicial da tragédia grega Prometeu desmotes, atribuída a Ésquilo, apresenta quatro personagens emblemáticas, situadas nos longínquos rochedos da Cítia. Tendo o corpo acorrentado às rochas escarpadas está o titã Prometeu, acusado de ter transmitido aos seres humanos honras que eram privilégios dos deuses, dentre as quais, a escrita, os remédios, a adivinhação, o fogo e a memória (mãe das ciências). Hefestos (deus da forja), mesmo contra a sua vontade, cumpre as ordens de Zeus, assistido por Cratos (Poder) e Bia (Violência). Enquanto Cratos trava um longo diálogo com o hesitante Hefestos, Bia é personagem muda - há que se destacar o silêncio e esta subserviência silenciosa que faz a alegria do poder. Quando Prometeu fala pela primeira vez, Violência e Poder já saíram de cena. Testemunhos iconográficos mostram que ao seu lamento seguia o suplício de ter a cada dia, por toda a eternidade, o fígado (sede das paixões, para os gregos) comido por uma águia. Não deixa de nos causar certo alento, mesmo sabendo que tudo é ficção, sermos informados de que segundo outras versões do mito, Prometeu conseguiu se libertar (as duas outras peças da trilogia na qual está Prometeu desmotes não chegaram a nós). Aterradora a construção literária desta imagem-mito tão paradigmática de agressão e resistência, e que usa informações das artes médicas (como a capacidade de regeneração hepática) que tornam a tortura ao corpo do titã eficiente e perturbadora - a técnica a serviço do poder.

Sem querer naturalizar o mito, fornecendo elementos para se argumentar que este mundo foi sempre um lugar de sofredores e torturadores, e correndo o risco de uma visão simplista e maniqueísta, é interessante observar que o oitavo Seminário Internacional Fazendo Gênero, ocorrido há pouco, tenha retomado como temas justamente corpo, violência e poder. Aliás, temas recorrentes nos estudos feministas e de gênero, examinados neste ano no contexto do debate de várias questões, dentre as quais a politização do problema da violência conjugal, com a criação da lei Maria da Penha, referência ao nome da mulher agredida durante seis anos pelo marido, que tentou assassiná-la por duas vezes (com arma de fogo e por eletrocução), deixando-a paraplégica.

No âmbito deste oitavo seminário ocorreram as mostras de filmes e de fotografias, também relativas aos temas corpo, violência e poder, promovidas pelo Núcleo de Antropologia Visual da UFSC (Navi). Uma parte da mostra cinematográfica foi dedicada à exibição de obras da diretora Ana Carolina Teixeira Soares, cujo primeiro trabalho foi a co-direção do curta Lavra-Dor (1967), e que se tornou conhecida a partir de Mar de Rosas (1977), iniciando sua trilogia - ainda vivemos com as trilogias - , composta, ainda, por Das tripas coração (1982) e Sonho de Valsa (1987). Em todos eles, a mulher protagoniza o desvelar das marcas da dor, no seio da família. Mais recentemente, seus filmes Amélia (sobre o choque cultural de Sarah Bernhardt no Brasil) e Gregório de Matos (magistral convergência de poemas e imagem) lidam, também, com deslocamentos e intolerância, advindos da ignorância e do abuso de poder. Além destes longas, foram exibidos 37 curtas e médias-metragens selecionados, a maioria documentários relativos aos padecimentos diários de indivíduos, grupos ou famílias em que a violência, principalmente contra mulheres e crianças, cometida por pessoas e instituições, é a tônica dominante. Neste contexto é importante notar que, além da autonomia estética destas obras, elas não deixam de ser, também, objetos pedagógicos na criação de novas formas de falar, ver e agir em relação às questões de gênero e à linguagem audiovisual.

A premiação das obras das duas mostras motiva reflexões. No caso do filmes, um júri popular elegeu como melhores os documentários Solitário anônimo, de Débora Diniz, e Laura, uma diva do babaduu!, de Mônica Siqueira, ambos realizados em 2007. O primeiro (cuja diretora acumula mais de 20 premiações) narra a história de um idoso encontrado deitado na grama, sem documentos ou posses, tendo no bolso um bilhete informando que seu desejo era morrer (solitário e anônimo), no que foi impedido por uma decisão judicial contrariando sua vontade. O segundo, produzido a partir de entrevistas de um trabalho de campo etnográfico com um grupo de travestis acima de 50 anos, no Rio, conta a história da famosa Laura de Vison e seus "modos de perceber e vivenciar o encontro com a velhice". Foi interessante a escolha de dois documentários cujos corpos envelhecidos dos protagonistas tornam-se tanto o objeto de manifestação da violência (Solitário anônimo) como o meio pelo qual se tenta criticá-la e rompê-la (Laura).

No caso das fotografias, a premiação (por uma comissão julgadora) de Separação, de Rosa María Blanca (melhor conjunto) e Tamain, de Fernanda Capibaribe (melhor foto), realça, na primeira, o corpo como lugar onde se inscreve a tortura/dor, mas em vez do fígado que sangra, um texto-denúncia está impresso no peito; na segunda, tocante não apenas por sua qualidade estética, o corpo é símbolo de resistência e empoderamento (no sentido libertário que lhe deu Paulo Freire): retrata uma mulher da tribo Xukuru, sentada em uma cadeira sob uma grande árvore. Trata-se de "Dona Zenilda: mãe de toda comunidade e viúva do cacique Xicão, assassinado em 1998". Uma menção honrosa foi dada, ainda, ao conjunto A auto-representação fotográfica de travestis e prostitutas do Itatinga-Campinas, produção coletiva de um grupo que é também modelo de resistência na defesa de direitos humanos e contra a homofobia. Criado há quase 20 anos, um dos aspectos políticos importantes deste grupo de Campinas é justamente a auto-representação: eles não delegaram a outros o poder de falar sobre seus corpos e sobre a violência de que foram vítimas (em particular por parte da polícia).

Goethe, impressionado pela figura de Prometeu, negando-se à submissão cega a Zeus (de quem Poder é lugar-tenente), viu o titã como modelo de autonomia e liberdade. A nós impressiona a recorrência de elementos do mito, por isso buscamos, também por meio dele, refletir sobre as relações humanas e suas representações atuais. Os filmes e fotografias são como a memória: uma multiplicidade de imagens com cortes e diferenciações, formando um jogo no qual poder e violência expõem suas nuanças, ora poetizadas, ora denunciadas, sobre os corpos que se constroem em símbolos que lemos como femininos, masculinos, plurais. Realidades e ficções com contornos algo indefinidos de claro e escuro, evocando uma mutiplicidade de sentidos. Ler e interpretar tais imagens é buscar um novo olhar sobre si e sobre o outro e pensar em modos de resistência contra tanta violência e violação de direitos. Haja fígado para tanta luta.

* Ana Maria Souza é mestre em Antropologia pela UFSC, Carmen Rial é coordenadora do Doutorado Interdisciplinar UFSC e do Navi, e Maria Cecília de M. N. Coelho é professora no Projeto Grego Antigo online Cogeae-PUC/SP)

ANA MARIA SOUZA, CARMEN RIAL E MARIA CECÍLIA M.N. COELHO *


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