"Domados", de Susan Faludi, e "Feito Homem", de Norah Vincent, invertem a equação feminista e pedem mais direitos ao sexo masculino
PEDRO PAULO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dois livros que abordam a questão da masculinidade chegam ao mercado editorial brasileiro. Trata-se de "Domados -Como a Cultura Traiu o Homem Americano", de Susan Faludi, e "Feito Homem - A Jornada de uma Mulher ao Universo Masculino", de Norah Vincent. Algumas circunstâncias os aproximam. Ambos são escritos por mulheres que se dizem feministas, as autoras são jornalistas americanas e, o mais importante, tratam o homem contemporâneo como vítima de sua condição de gênero. Nos Estados Unidos, durante a década de 1970, emergiu, paralelamente ao então reflorescente movimento feminista, os chamados "men's movements", que já apontavam para as demandas sociais restritivas postas aos agentes do sexo masculino. No Brasil, esse tipo de discurso, que qualifiquei como "discursos vitimários" sobre a masculinidade, se fez perceber principalmente a partir da década de 1990. Constitui ainda hoje o principal mote para os estudos e ensaios (acadêmicos ou não) sobre essa temática. Os livros aqui mencionados apenas atestam essa percepção. "Domados" é composto por reportagens publicadas durante a década de 1990 em vários periódicos americanos e reeditadas no livro. São mais de 640 páginas, em que a autora investiga episódios e fatos recentes da vida norte-americana, como o massacre em Waco [no Texas, em 1993, quando mais de 80 pessoas morreram queimadas em um incêndio], o surgimento dos "Promise Keepers" (movimento de homens cristãos), as demissões em massa em empresas e estaleiros norte-americanos etc.
Mal estar da cultura
Isso já seria suficiente para causar estranheza ao leitor brasileiro, pois uma série de eventos que não nos são conhecidos aparecem em extensas reportagens, assumindo o fato de que os leitores conhecem suficientemente alguns personagens e dados fundamentais, o que nem de longe é o caso. Esse não é, no entanto, o maior problema. O que une essas caudalosas incursões jornalísticas é a idéia de que a cultura, vista como uma entidade metafísica, pode ser responsabilizada pelo mal-estar da masculinidade americana. Para a autora, os homens foram traídos por promessas feitas pela cultura daquele país no pós-guerra: "Os pais tinham feito seus filhos senhores do universo e parecia (...) que aquilo que eles haviam criado duraria para sempre". "A nação reivindicou uma ascendência sobre o mundo; os homens, uma ascendência sobre a nação; e um certo tipo de persona masculina, a ascendência sobre os homens."
O que une as duas obras é a idéia de que a cultura é responsável pelo mal-estar da masculinidade americana
As análises ali contidas são inconsistentes e esdrúxulas, pois, subjacentes às traições públicas, que vagam na incoerência de um discurso de um e outro personagem importante (para nós, meros desconhecidos), está presente a deserção dos pais que prometeram aos filhos um mundo que nunca existiu. Ao lado desse "motivo", temos o que ela chama de "cultura ornamental", que abriu mão da utilidade em favor da exibição pessoal e da idéia de celebridade.
Travesti às avessas
Os homens são hoje, segundo ela, escravos do glamour, sendo a mídia aquela que molda esses "papéis ornamentais". Essas são as supostas razões para a crise da masculinidade e para a fragilização dos homens. Em "Feito Homem", Norah Vincent narra a sua experiência de ter se "travestido" de homem e, por meio dessa metamorfose, auxiliada por um especialista em maquiagem, relata a sua incursão por nichos masculinos: uma liga masculina de boliche, clubes de striptease e até mesmo um mosteiro masculino, entre outros. O cerne do livro consiste exatamente nessa experiência, pois, como ela diz, "coisas muito reais e profundas podem acontecer sob a capa de uma falsidade". Valorizando seu feito, complementa: "As verdades que aprendi e vivenciei não teriam se revelado de outra maneira".
Sem seriedade
Da mesma forma que Faludi, Vincent insiste em constatar a fragilidade do homem americano contemporâneo: "As pessoas vêem fraqueza numa mulher e querem ajudar. Vêem fraqueza num homem e querem esmagá-la". O livro é recheado de observações sobre essa presumida fragilidade e sobre os fardos que os homens têm que carregar para cumprir seus mandatos e responsabilidades masculinas. Ambos estão bem longe de ser estudos sérios sobre o tema (Vincent tem o mérito de reconhecer isso). Adotam uma perspectiva vitimária e fazem generalizações indevidas. São livros bastante ligados à realidade norte-americana, e, no primeiro deles, torna-se praticamente impossível acompanhar com interesse longas reportagens adensadas de falas e detalhes supérfluos que em pouquíssimos momentos lançam luz, quando o fazem, sobre algo além daqueles episódios específicos. No caso de "Feito Homem", deve-se levar em conta o fascínio que os americanos têm por agentes que se metamorfoseiam em caricaturas e estereótipos e que, ao lado de cenas de tribunais, freqüentemente se apresentam em suas produções cinematográficas. "American obsessions". As autoras pensam que o fato de serem mulheres e de se declararem feministas torna mais legítimas as acusações de que os homens têm sido vítimas de sua própria condição de gênero. Um simples postulado sociológico -de que o decoro associado às posições sociais de poder costuma ser mais restritivo do que aqueles relacionados às posições subalternas- seria suficiente para explicar porque os fardos são maiores para os machos; afinal de contas são eles que ainda hoje detêm a supremacia dentro da hierarquia simbólica de gênero. Ou não? Como se os homens precisassem de mais direitos do que já têm, chega a ser hilário o apelo de Vincent para que eles desencadeiem um movimento análogo ao feminismo: "Os homens ainda não conseguiram seu movimento (...). Eles têm esse direito".
O homem liberta
Nada supera, no entanto, a "idéia" de Susan Faludi, segundo a qual a libertação dos homens é necessária, pois só eles podem ajudar na libertação das mulheres e das populações subordinadas: "É por isso que essas populações têm tanto interesse na libertação da única população em condição extraordinária para descobrir e utilizar um novo paradigma -os homens". Com um feminismo desse tipo, alguém precisa de chauvinismo?
PEDRO PAULO DE OLIVEIRA é professor de sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de "A Construção Social da Masculinidade" (UFMG/Iuperj).
DOMADOS - COMO A CULTURA TRAIU O HOMEM AMERICANO
Autor: Susan Faludi
Tradução: Talita Rodrigues
Editora: Rocco
Quanto: R$ 77,50 (644 págs.)
FEITO HOMEM
Autor: Norah Vincent
Tradução: Magda Lopes
Editora: Planeta
Quanto: R$ 34,90 (304 págs.)