A defesa dos direitos dos homossexuais já rendeu na Bahia discursos que beiram a apologia. Personalidades históricas tiveram suas vidas íntimas devassadas através do túnel do tempo, heróis nacionais se transformaram em trunfo a favor da ultraliberação sexual e proezas criativas, outrora reconhecidas por seu valor intrínseco, tornaram-se bastião contra o preconceito. A preocupação em rebater a homofobia não foi abandonada pela dupla de artistas Paulo Fraga e Pedro Costa, um cearense e um fluminense que se conheceram em Salvador, em janeiro deste ano. Mas, ao invés de expor teorias a respeito das “sexualidades desviantes”, os dois, homossexuais há muito “fora do armário”, resolveram combater a violência que já experimentaram na pele com uma artilharia muito mais pesada: a música e o riso. Resolutos, dão sua receita para o sucesso: “Do funk nasce o prazer de dançar, se divertir. Da drag music nasce o humor, a piada, o glamour, o brilho. E do punk nasce a contestação política. Juntamos tudo isso para expressar nossas insatisfações” — eis a certidão de nascimento da “Solange, Tô Aberta!”, banda ‘de guerra’, mas picaresca, criada pelos dois faz quatro meses e que estreou nos palcos na madrugada deste sábado, em um show na boate Tropical, na Gamboa, próximo ao Forte de São Pedro. Enquanto desfilavam sua coleção de ‘batidões’ para uma audiência modesta, mas tão atenta às músicas quanto aos contorcionismos de Paulo sobre o tablado, os dois intercalavam comentários do tipo auto-reflexivo sobre a própria condição: “Melhor uma bicha bêbada no palco do que uma sóbria na platéia, apagada”. Talvez sem perceber muito a ironia, o público aprovava às gargalhadas. O figurino, especialmente montado para a estréia, também demandava sua dose de atenção. Afinal, não é todo dia que se vê uma loura platinada de longo verde-musgo e antenas sobre a cabeça (Pedro) acompanhada por outra, de cabelos tingidos, meia-calça rendada e maquiagem especial para realçar a cor dos olhos (Paulo). A primeira pergunta a ser feita à dupla de cantores-performers é óbvia: quem diabos é Solange? A resposta revela uma entidade coletiva: “O nome surgiu como uma brincadeira. O fato de termos escolhido Solange se deu por ser muito comum entre travestis”. Batismos à parte, a banda, que oficialmente “não curte partidos políticos ou politicagem”, aproveitou o recente clima eleitoral para compor o jingle de sua candidata à Presidência, a — não por acaso — travesti paulistana Silvetty Montilla, artista “da noite” segundo definição do site GLS Mix Brasil. “Não a conhecemos pessoalmente, mas gostamos do trabalho dela. Suas músicas são uma de nossas influências drag queen”, conta Pedro. Por e-mail, pelo qual mantêm contato com a ‘ídola’, ele e Paulo mostraram a Montilla a letra da música: Se você já tá cansado / de tanta politicagem / se você já não agüenta / tanta sacanagem / Robalheira e desvios / mensalão e cuecão / Atenção porque agora / eu vou dar a solução / Ela é toda trabalhada / ela é toda sorridente / ela é muito elegante / ela é inteligente / Silvetty Montilla para presidente! / Silvetty Montilla para presidente!. “Ela amou!”, se derretem. Labuta de principiante Embora diferente de 99% das bandas que aparecem todos os anos no cenário musical brasileiro, a Solange, Tô Aberta! enfrenta obstáculos bastante conhecidos para quem busca despontar no cobiçado caminho rumo ao estrelato: não dispõe dos serviços de um produtor especializado, dependem da estrutura disponível no local do show e também precisam contratar um DJ para acompanhá-los, pois ainda não encontraram um disposto a “vestir a camisa da banda”. Em suma: vivem alijados do profissionalismo. Nada, porém, que os faça menos otimistas a respeito do futuro da banda. “Temos muita garra e muita vontade de crescer, além de um monte de letras esperando batidas pra ‘sair do armário’”. Não bastassem os problemas técnicos, os dois têm de lidar ainda com a resistência, até certo ponto natural, de quem não compartilha os códigos do universo GLS. “Sabemos que a proposta é nova e forte, ou seja, ou gostam ou odeiam. Mas estamos surpresos com a receptividade que estamos tendo”, diz Paulo. “Através do site do My Space conversamos com pessoas de todo o mundo: DJ´s, punks, drags, artistas, bandas, enfim, pessoas. E a galera curte muito o som e o nosso estilo”. É de se supor que boa parte dessa receptividade se deva às letras compostas pela dupla. É também preciso reconhecer que passam ao largo de qualquer preocupação poética. O que não significa que se resumam à avacalhação, defende a banda. “Elas [as letras] surgem de muitas leituras e pesquisas, porque somos pesquisadores de temas ligados à defesa da liberdade de expressão”. Os dois se referem ao estudo sobre transformismo e cultura gay feito por Pedro no mestrado de Artes Cênicas da Ufba, do qual é aluno, e a um projeto de Paulo com travestis de Fortaleza, onde nasceu. Mas a dupla confessa que a ‘inspiração’ não é somente acadêmica: “Em outras letras, a gente fala de situações que muitos vivem, mas não falam. Nos inspiramos em amigos, observamos pessoas e comportamentos. Sabemos que há muita violência contra os travestis, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais. Violência de todo o tipo. E não conseguimos ficar calados”. Aflora então a vertente punk da Solange, To Aberta!: “O que nos move é o nosso desejo de dar voz aos subalternos, de uma forma contestadora e prazerosa”. ‘Artivismo’ Essa necessidade de não abandonar temas caros à luta pelo respeito à opção sexual, o que implica em assumir uma postura ativista, pode revelar o calcanhar de Aquiles da banda, mas não incomoda a Solange. Arte transformada em ‘artivismo’? “Pode até ser confundido com tal e até realmente ser, mas não é isso o que nos preocupa. Já ouvi entre artistas de dança e teatro coisas do tipo: ‘Por que vocês falam sobre isso? Por que vocês se assumem gays?’ A gente não tem necessidade disso. Mas não tem como, inicialmente, falarmos de outros temas. A gente defende o que a gente acredita”. Eis então os próximos alvos da Solange: uma música sobre “mulher que dá porrada”, outra na qual fazem “uma crítica à psicanálise” e mais uma “ao colonialismo”. Todas já estão devidamente batizadas: “Melô da Valentona”, “Fuder Freud” e “No Brasil Colônia”. ( Reproduzido do Jornal A Tarde, 10/12/06, Vitor Pamplona, repórter) Fotos - http://portal.marccelus.com/
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on segunda-feira, dezembro 11, 2006
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