Direitos Sexuais e Reprodutivos no Editorial da Folha  

Postado por Felipe Bruno Martins Fernandes

07/06/2007

Verdades e mentiras

Informação. Não há muita dúvida de que, numa sociedade aberta, tecnológica e competitiva como é a nossa, a informação torna-se um ativo cada vez mais importante, não apenas em termos econômicos como também de cidadania. É quase um truísmo dizê-lo, mas só tem condições de exercer plenamente seus direitos aquele que os conhece e, além disso, possui dados básicos sobre o mundo em que vive.

Nesse contexto, é meritória a iniciativa da ONG BemFam (Bem-Estar Familiar) de divulgar informações técnicas sobre como realizar um abortamento "caseiro" seguro, ou seja, como ministrar corretamente a droga misoprostol (Cytotec) a fim de provocá-lo. O misoprostol, originalmente fabricado para tratar úlceras pépticas e artrites, apresenta acentuada ação sobre a contratilidade uterina, o que o torna relativamente eficaz para interromper a gravidez. Embora sua venda no Brasil esteja restrita a estabelecimentos hospitalares com cadastro especial na Anvisa, encontrá-lo é bastante fácil, tanto na internet como nas periferias das grandes cidades. Não há muita dúvida de que essa substância seja a empregada em boa parte do cerca de 1 milhão de abortos clandestinos realizados por ano no país. O problema é que nem todas as mulheres que se arriscam a utilizar a droga o fazem corretamente. Há todo um protocolo de uso que, por desinformação, deixa muitas vezes de ser observado, o que aumenta bastante o risco de complicações. Como sempre, são as mulheres mais pobres e menos instruídas as que mais freqüentemente se dão mal. A assimetria não poderia ser maior. Uma grávida de posses não só tem acesso fácil ao "modo de usar" correto como ainda pode, se quiser, fazer um aborto sem nem mesmo infringir a legislação, bastando, para tanto, que viaje a um país onde o procedimento não é proibido. Já a pobre, não apenas se vê compelida a profanar a lei como ainda corre maiores riscos --que em casos extremos incluem a morte-- ao fazê-lo.

É claro que nosso combativo Ministério Público já estuda enquadrar a iniciativa da BemFam como apologia ao crime _o que me parece ridículo. Chegamos aqui ao ponto central desta coluna. Como regra geral, não creio que possamos qualificar como crime o fornecimento de informações corretas a respeito do que quer que seja. Se há algum delito nesse campo, é muito mais provável que ele esteja em tentar escondê-las.

Assim, considero perfeitamente legítima e meritória a proposta da BemFam. Ao que parece, um programa semelhante de redução de danos foi implementado no Uruguai --onde a legislação não é muito diferente da nossa-- com excelentes resultados na diminuição da mortalidade materna resultante de aborto. De modo análogo, não vejo maiores problemas legais ou morais em divulgar, através de publicações ou páginas da internet, os métodos de suicídio mais eficazes. Algum provocador poderá me perguntar o que acho de tornar amplamente disponíveis informações sobre como construir uma bomba atômica ou produzir armas biológicas. Com efeito, enquanto o aborto e o suicídio podem em determinadas situações ser reconhecidos como soluções penosas mais racionais para um dilema, lançar uma arma de destruição em massa é invariavelmente uma ação condenável em termos morais.

Só que há uma diferença entre ensinar elementos de física nuclear ou microbiologia e explodir uma bomba atômica ou lançar esporos de antraz por aí. O que a lei pode e deve reprimir são ações anti-sociais, não idéias ou conhecimentos que podem eventualmente ser usados para o mal. Admitir o contrário seria lançar as bases de uma censura científica. Quem definiria o que é material sensível? A quem esse tipo de dado poderia ser passado? Apenas a cientistas militares ou que colaborem com órgãos de segurança? Nessa hipótese, encontra-se em perigo o próprio método científico, que, para funcionar bem, exige a plena circulação de informações.

No mais, como no caso do aborto, volta a ocorrer aqui o problema da assimetria. Terroristas de verdade não precisam ir à internet em busca de instruções para a construção de bombas nucleares. É muito mais fácil e eficiente (do ponto de vista do terrorista, é claro) obter esses produtos no mercado negro, em geral desviados dos paióis da antiga URSS (em mais uma demonstração de que controle militar não é sinônimo de segurança). Já a censura científica teria como vítima líquida e certa o próprio avanço da ciência.

Não me entendam mal. Eu não estou como Immanuel Kant, propugnando pela eliminação do direito de mentir. Existem diversas situações em que faltar com a verdade é necessário. Elas vão das pequenas interações sociais --você está linda hoje!-- a questões mais cruciais. Um exemplo célebre levantado contra Kant é o do alemão que esconde um amigo judeu em seu sótão e recebe a visita da Gestapo. Pela lógica do filósofo prussiano, tal alemão estaria obrigado a dizer a verdade aos policiais nazistas, o que quase certamente implicaria a morte do amigo e a sua própria, por esconder um adversário do regime.

Qual é então a diferença? Por que eu posso mentir explicitamente para o policial nazista, mas não esconder a verdade sobre o misoprostol de jovens que possam querer abortar? Precisamos aqui recorrer à distinção que os juristas traçam entre "em abstrato" e "em concreto". Quando falamos em termos genéricos sem nos dirigir a nenhum interlocutor em particular, como no caso do aborto, do suicídio ou das "informações sensíveis", dizer a verdade se impõe como um dever. Não porque ela não possa causar mal, mas pela simples razão de que apenas situações concretas podem ser levadas à balança na qual se pesam os prós e contras que podem eventualmente legitimar o direito de mentir --que é, em princípio, uma exceção. Em geral, é só "a posteriori" que temos, quando temos, condições de dizer que a mentira teria sido preferível à verdade.

Viver numa sociedade aberta tem como pressuposto a idéia de que cada cidadão sabe o que é melhor para si e age de acordo, cabendo ao poder público apenas garantir que todos tenham acesso à melhor informação disponível. Isso nem sempre é verdade, mas precisamos agir como se fosse, ou estaríamos chancelando uma separação entre capazes e incapazes, o que destruiria um outro pilar da democracia: a igualdade diante da lei. Em suma, o mundo é um lugar repleto de imperfeições, mas é o nosso mundo e precisamos aprender a viver nele.

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