Samantha Buglione
Não é de hoje que a existência de uma pseudocidadania no Brasil, que insiste em construir sujeitos de diferentes categorias, parece ter se tornado a regra por aqui. Algo sintomático da nossa política do compadrio que permite privilégios aos amigos e rigores demasiados ao "zé-ninguém", ainda mais se o "zé" for uma "maria".
A ausência de tratamento adequado às mulheres, ainda mais as criminosas, é marca dessa lógica e fato histórico. Como também é nossa marca a resistência em reconhecer devidamente a autonomia das mulheres; tema espinhoso e delicado, principalmente quando relacionado à reprodução e sexualidade. Por exemplo: o direito ao aborto voluntário incomoda não por uma hipotética violação à vida, mas porque dá poder às mulheres ao respeitar sua liberdade. E, cá entre nós, não se dá poder a alguém de segunda categoria. Isso é tão marcante que é mais fácil para as instituições públicas e para a sociedade brasileira em geral reconhecer direitos e interesses de seres não-nascidos a reconhecer os direitos das mulheres: veja o exemplo do Estatuto do Nascituro (ser que ainda há de nascer).
O paradoxo é que a defesa do feto como pessoa é apenas um ponto de vista entre muitos, e defendê-lo só é possível num regime de liberdade de expressão. É como se preteríssemos corromper o próprio sistema a permitir a efetiva realização da dignidade e da liberdade das mulheres.
Uma boa metáfora para compreender a política do Estado brasileiro, tratando-se de temas que envolvem a liberdade e a dignidade das mulheres, é a do "estado de natureza". Na ausência do Estado, vale a lógica do "cada um por si" – ou do "Deus por todos", para os que crêem. O problema é que o "estado de natureza" da política brasileira não é fruto de descuido, mas é política institucionalizada. A tragédia dos fatos denunciados na imprensa sobre a adolescente encarcerada no Pará é a mesma das mortes de mulheres por aborto inseguro. Ambas decorrem de uma prática que se caracteriza pela ausência e abandono às cidadãs brasileiras. Em ambos os casos, seja na prisão de mulheres com homens, seja na criminalização do aborto voluntário, observa-se a imposição de limites à dignidade das mulheres. A discriminação institucionalizada às mulheres pobres é cruel e é igualmente oficial à pena sobre a alma e o corpo.
Uma pena que se paga com a integridade física e moral e com a própria vida. Não nos esqueçamos de que no Brasil a nossa cordialidade sempre permitiu que alguns poucos ultrapassassem a linha da ilegalidade, do crime e dos maus- tratos, principalmente quando o tema é aborto. É a cordialidade da cela especial ou da liberdade exercida no exterior que diferencia, legalmente, as brasileiras. No caso do aborto, o princípio penal da extraterritorialidade condicionada (artigo 7, II, § 2º, 'b', Código Penal) permite às mulheres com condições econômicas e acesso à informação praticar aborto no exterior sem violar a norma penal brasileira. Afinal, só é crime aqui se também o for no País onde o ato foi praticado.
Em outras palavras, no Brasil é possível pagar, sim, pela liberdade.
Além disso, dessa discriminação institucional, o Estado brasileiro introduz deliberadamente um "estado de natureza", no qual a troca sexual se torna moeda e condição para a sobrevivência, como para a adolescente no Pará, e a vulnerabilidade vira sentença de morte pelo aborto voluntário. A ausência do reconhecimento de direitos e de políticas públicas se tornou a política estatal. Essa "microfísica do poder" invertida – do controle do Estado a partir do descontrole social – gera uma tragédia sem drama, à medida que a história é substituída pela natureza, onde impera a lógica do mais forte, e se torna impossível a aprendizagem dos indivíduos como cidadãos. O "Deus por todos" marca a lógica do desamparo.
Quando a prática de colocar mulheres sozinhas em celas masculinas se legitima em argumentos de falta de estrutura, recurso e pessoal, o descaso institucional virou a regra. E é como se a condição de criminosa da mulher justificasse e chancelasse a violência e a sua própria morte. As mulheres em celas de homens e a morte por aborto de mulheres pobres são reflexos da institucionalização do salve-se quem puder (pagar). O mais surpreendente é que o cuidado à mulher que sangra do aborto inseguro e a denúncia à violência da menina presa não surgem do Estado ou dos seus atores e representantes. Fica evidente que, no Brasil, os sentimentos de compaixão parecem sobreviver melhor nesse "estado de natureza", nessa ética do desamparo, do que no próprio Estado de direito. É uma outra mulher que socorre a mulher que sangra, é um preso homem que denuncia os maus-tratos à menina presa.
Diante desse quadro, é forçoso concluir que a ética abunda mais entre os brasileiros no abandono do que no Estado. Em termos de democracia, a crise do Estado brasileiro nunca foi maior. Se por um acaso ele sumisse do planeta, por certo nossos problemas continuariam. Mas nossa tragédia recuperaria o drama e saberíamos, talvez, pelo que lutar.
Héctor Ricardo Leis é professor de ciência política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Samantha Buglione é professora de direito na Univali de São José, doutoranda em ciências humanas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e diretora do Instituto Antígona – www.antigona.org.br.